Pelo menos quatro campanhas pela
ética na política e contra a corrupção de quatro grandes segmentos de
cidadãos atuantes foram lançadas nos últimos anos, sem, no entanto, se
articularem numa legítima ambição de abranger toda a sociedade. Se não,
caro leitor, responda com honestidade se já tinha notícia de alguma
delas ou mesmo as viu frequentar o espaço da grande mídia. De setores de
entidades civis, de profissionais liberais, sindicatos, igrejas e
estudantes, vemos a continuidade da campanha do
MCCE – Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, que nos legou a Lei
da Ficha Limpa, e que agora se dedica à causa da reforma política.
Garanto que o leitor tem sido bombardeado pelas sugestões de reforma de
nossos políticos, mas não do que propõem entidades civis da expressão de
uma CNBB, OAB, UNE entre outras mais de cinquenta preocupadas com o
tema. Ou de campanhas de entidades empresariais e
algumas empresas singulares, como a do MBE – Movimento Brasil Eficiente
(que propusemos que incorporasse também o fim ético, tornando-se MBE²,
uma vez que não existe eficiência sem ética), lutando pela
simplificação e transparência tributárias, uma das maiores fontes da
corrupção social. De setores dos operadores da Justiça, como os
promotores públicos, temos acompanhado a campanha “O que você tem a ver com a corrupção” extrapolar até mesmo nosso território e ser recomendada como iniciativa da própria ONU. E ultimamente presenciamos a Campanha pela Moralidade
Nacional que, de iniciativa originária no Clube Militar, tende a ganhar
a adesão de várias outras entidades militares por todo o território
nacional. Se muito tem se indignado cada um destes segmentos da elite de
nossa cidadania, pouco tem sido articuladas estas iniciativas para a mobilização
de toda a sociedade. Pois, se todas dependem da mídia de massa, pouco
tem sido abordada a pauta que está por trás de tudo: a crescente onda de
relativismo moral que enfrentamos. Talvez pelo
fato do problema começar pelos operadores da própria mídia e ser de tal
monta que acaba passando despercebido em meio a um noticiário
alucinantemente dedicado a obsessiva cobertura dos delitos sem-fim de
nossa classe política. Para além de a mídia de entretenimento estar
dedicada a revolucionar os costumes morais tradicionais de um país
"careta", como se referiu recentemente sobre a sociedade brasileira um
famoso novelista campeão global de audiência.
Há
anos firmamos a convicção de que tais iniciativas, por mais legítimas
que sejam, não terão a força necessária de mudar nossos miseráveis
costumes políticos se não se convergirem para o espaço público da mídia
de modo unificado e simples, num formato que privilegie mais os
enunciados de propostas do que análises profundas e dissertações
eruditas. Pois é, sobretudo, na mídia que a corrupção dos valores morais
do imaginário social brasileiro confunde conceitos e traveste de
normalidade situações absolutamente anômalas. Se não entendemos a
diferença entre o valor intrínseco da vida e as chamadas “condições de
vida” de viés esquerdista, entre igualdade de oportunidades e igualdade
social - que traz oculta a negação das leis pela celebração de privilégios corporativos, entre Estado e governos, entre legalidade e moralidade
pública, entre Justiça e justiça "social", e principalmente entre
responsabilidade política de todos, e para além de responsabilidade
social de empresas, responsabilidade civil profissional, ou
responsabilidade fiscal de governantes, não temos condições mínimas de
autonomia, de pensamento, de liberdade, enfim. Liberdade, aliás, que de
alteridade como manda a tradição filosófica, entre nós é trocada pela liberdade de identidade, alheia e a despeito da lei.
Uma
elite de cidadãos conscientes e atuantes no Brasil tem a urgente
necessidade de escolher entre o paradigma hobbesiano do homem como lobo
do homem ou a utopia rousseauniana do bom selvagem! Ou seja, entre a
ideia da tradição classicista do pecado original - que confirma o livre
arbítrio da liberdade da escolha individual - e o romantismo do mito
adâmico do homem puro e sem pecado, o qual só se torna "mau" e "pecador"
pela ação deletéria da sociedade. Se no
primeiro paradigma assumimos as consequências por nossas escolhas
individuais como cidadãos livres, tornando possível a transição de uma
cultura de transgressão para uma cultura de plena cidadania, no segundo
modelo ideológico diluímos a responsabilização penal para toda a
sociedade tornando-nos todos cúmplices da omissão política e
transferindo cinicamente a culpa para as calendas de nossa formação
histórica ibérica ou para a fatalidade da generalização do povo sem
instrução elementar.
Urge
a cada cidadão mais consciente e atuante reconhecer a sua
responsabilidade política diante da verdadeira reforma cultural que o
país deve enfrentar e que pode ser expressa em três pontos principais:
1) a construção de um novo imaginário social na mídia, sobretudo no que
tange ao resgate de uma cultura política fundada em valores morais,
superando “a voz das ruas” meramente reivindicatórias pela
voz dos cidadãos responsáveis por propostas de políticas públicas
consistentes; 2) a defesa de instituições de Estado fortes e
independentes, em detrimento direto da burla do Estado-empresário, que
garantam os valores constitucionais da vida, da justiça, da propriedade e
da liberdade; e 3) a maior qualificação do debate público pela
superação do dilema da alegada crise de gestão do setor público e a
crise de valores do setor privado, raiz do mau tempo econômico que
vivenciamos.
Hoje,
sem sombra de dúvida, esta é a agenda indeclinável da cidadania. Se a
Educação tem patinado ao longo das últimas décadas, e apresentado um
viés doutrinário cada vez mais coletivista e relativista; se a Justiça
tem se mostrado lenta, pouco eficaz, corporativista e o menos
transparente dos poderes; e se a mídia não reconhece a sua própria
responsabilidade cívica - como manda, aliás, o artigo 221 da C.F. sobre
as premissas de sua concessão pública - diante da construção e difusão
de valores morais, caberá a esses cidadãos atuantes, uma verdadeira
elite da sociedade, os verdadeiramente melhores de nós, e não
necessariamente os mais afortunados, tomar para si esta inadiável
tarefa.
Desde
o marco fundador da cidadania, a promulgação da Carta Magna na
Inglaterra de 1215, até os dias atuais, o que entendemos como cidadania
vem evoluindo. Num primeiro momento, a luta era por direitos sociais,
expressa em filantropia e assistencialismos, seja pelas razões e ação
das Igrejas, seja pelas razões e ação do Estado. Num segundo momento, a
cidadania passa a ser vista como a defesa da legalidade e das conquistas
civis, e a própria urbanidade, ideário iluminista que nos persegue até
hoje. Mas ao longo do tempo, conforme essas conquistas se consolidaram, a
definição de cidadania avançou para se repensar a relação entre
cidadãos pagadores de impostos e eleitores, e aqueles eleitos para
postos no poder público. Cidadania não é mais apenas a defesa de
direitos, mas principalmente a compreensão de que a cada direito
conquistado corresponde o dever de fiscalizar a execução dos orçamentos
públicos, de cobrar de políticos e servidores a transparência e a moralidade
pública inerente às funções que desempenham, e de que se trabalhe para a
independência e valorização das instituições de Estado, a fim de se
garantir efetivamente o fortalecimento da democracia, os alegados
direitos sociais e as oportunidades iguais para todos. Por que as duas
maiores revoluções culturais da humanidade ocorridas nas últimas décadas
assim exigem: diante da conscientização ambiental sobre os limites de
renovação dos recursos naturais do planeta e da abertura de dados pela
tecnologia da informação sobre o interesse realmente público da ação
dos governantes, o sentido da cidadania tem sido mais da ordem do dever
político do que da mera reivindicação populista de direitos sociais
ilimitados.
Depois
de trinta anos de militância na mídia, estamos convencidos de que não
superaremos nossa cultura de transgressão e omissão políticas, o
corporativismo de nossas instituições jurídicas, as persistentes
deficiências da qualidade de nosso ensino público, a degradação global
dos valores morais da família e das igrejas e o imediatismo
patrimonialista de nossa ação empresarial, sem um verdadeiro choque de
mídia, a exemplo do que já ocorreu em democracias mais maduras. É
urgente que nos reunamos numa só elite de cidadãos políticos as
lideranças dos mais variados segmentos preocupados com a crise ética que
nos degrada a todos. E isto só com uma grande campanha
de mobilização nacional que capture e divulgue o pensamento de uma
elite de cidadãos atuantes, verdadeiros agentes de cidadania que
compreendem que controle social se faz com propostas objetivas e
eficientes de políticas públicas e com participação permanente no debate
público. Uma campanha mais cívica do que
meramente publicitária, que nos apresente a nós mesmos. Por que esses
agentes existem, e são muitos. Assim como suas propostas boas e
inovadoras. Mas o que nos deprime, para além da recessão econômica, é a
nossa ressaca moral. Na verdade, um fenômeno de
mídia resultante de uma cobertura obsessiva e irresponsável de nossa
miséria política, a consagração de uma “opinião publicada” de uma
decantada cultura de transgressão a que somos fatalmente condenados por
uma mera idiossincrasia doutrinária, uma fixação mórbida pelo
fracasso, um compromisso com a derrota por antecipação, um arraigado
complexo de vira-lata. Uma mídia vassala no acompanhar a chapa branca do
poder constituído e não a ação inovadora da cidadania constituinte.
Como dizemos aqui no nosso Instituto A Voz do Cidadão: "Não
basta aos cidadãos terem responsabilidade civil. Não basta às empresas
terem responsabilidade social. Não basta aos governos terem
responsabilidade fiscal. Para o país voltar a crescer, é preciso o
compromisso de todos para com a responsabilidade política, expressão de
uma verdadeira cultura de cidadania".
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